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Foto do escritorIDIMARCOS CAMPOS

Zique zaque


Recebia cascudo por ser passivo, sofria discriminação de todo tipo,”bullying”, tapa na orelha, um distrato após o outro... Virou chacota na escola, porque ninguém admirava o politicamente correto... Apanhava na rua dos colegas, a mulherada fugia dos seus reclames , num dava uma dentro; era considerado feio, um pobretão sem um puto no bolso, um zero no meio da página em branco, nasceu pra tomar bolada...

Um desastrado como gente, a família tratava-o como bobão, um zique zaque na mão dos espertos, o mais otário dos parentes. Incapaz de roubar, só falava verdade, acolhia os mais velhos, valorizava a democracia racial, respeitava a sexualidade dos outros, procurava a paz entre as religiões, amava a ternura das crianças, defendia os povos originários, nunca furava fila, etc.

Os pais, inconformados com a enfermidade, deram um banho de ervas em Petrônio, bateram cabeça pro feitiço, chamaram os crentes, suplicaram aos católicos, recorreram ao Candomblé, procuraram ajuda no judaísmo, meditaram no templo budista, rezaram junto aos muçulmanos; porém nada remediava a patologia, restava, agora, a ciência.

A medicina acabou prevalecendo, marcaram consulta na clínica geral, o doutor fez a anamnese, indicou a psiquiatria do SUS. O psiquiatra analisou o caso, investigou a mente do doente, pediu um montão de exames para confirmar o diagnóstico de encapotamento do superego. Consistia, provavelmente, de doença psico social, uma sociopatia prevista na psicologia do comportamento.

Fizeram os exames no SUS, bateram as pernas pra tratar do idiota. No raio x do organismo detectaram dilatação no músculo cardíaco, um coração do tamanho do boi, no meio do peito do coitado. Um órgão quase transparente, deformado, capaz de perturbar a harmonia da sociedade capitalista; estava cheio de amor, a moléstia parecia incurável.

Excomungado do círculo familiar, rejeitado no seio materno, segregado na comunidade. Sobrou pra sobreviver o mercado de trabalho, o salário mínimo, trabalhou como burro de carga, estruturou a vida, comprou um barraco de posse. Uma meia água na ladeira do Tou na Merda, no bairro da Palhada: com quarto, cozinha e banheiro, ao ar livre, no quintal.

Cansado da solidão, o iguaçuano casou, relativamente cedo, contava uns vinte anos, com uma moça tranquila. Deu certo no princípio, ela admirava o companheiro; no meio da relação a situação degringolou, pois a falta de dinheiro falou mais alto, aí no fim restou meu bem tudo bem, os bens pra cá, você pra lá... Nesta hora entrou pelo cano, perdeu o imóvel.

No olho do furacão, vivendo de aluguel social, prestou atenção nos demais, só se arrumava quem passava a perna no semelhante. O padre fez a reforma da igreja com o lucro da missa negra, aproveitava a ocasião pra molestar as criancinhas.

O pastor da igreja do bem ficou rico com o mal, depois de ter trocado a bíblia pela arma de fogo; reunia os jagunços, organizava a invasão das religiões afrodescendentes, saqueava os dividendos, promovia o quebra-quebra dos terreiros.

O político, vereador eleito por ali, sem empatia com o povo, ia pra frente roubando o dinheiro público. Pegava bebê no colo, contraía acordo com a milícia, comprava voto, prometia mundos e fundos…

A antiga esposa ganhava a vida vendendo o corpo, empregada no inferninho da Cacuia; usada como guardanapo, onde o freguês comia, limpava a boca e jogava a sujeira fora.

Cada um, neste mundo de mentiras, negociava o quê tinha... Totalmente fora do contexto, marginalizado, deixado de lado ao Deus dará… Petrônio concluía uma lição: honestidade nunca trazia prosperidade.

Morando na Rua da Amargura, devendo o cartão de crédito, bebendo água de poço, dependurado na miséria, com a luz cortada, resolveu modificar o comportamento. Avaliou a realidade nua e crua, a contragosto levantou o inventário do patrimônio, viu que lhe restara apenas a alma como moeda de troca.

Desesperado, encurralado no canto da parede, perdido num labirinto de emoções, entrou numa fila enorme, disposto a negociar o único ativo, a essência do ser, a própria alma.

Depois de longa espera, observando o desespero dos miseráveis, foi recebido pelo comerciante. O mercador dos aflitos sucateava o valor dos interessados, arrematava o íntimo alheio, avaliava por baixo as almas penadas.

O chifrudo de rabo ria da falta de paz, desdenhava das rugas dos anciões, comemorava a mutilação infantil nas guerras, incentivava a fome, estimulava a ignorância, tripudiava do futuro das pessoas as quais imploravam a esmola da maldade.

De relance chegou a vez de Petrônio revindicar clemência à personificação do mal. O capeta arregalou os olhos, surpreso diante da pureza daquele espírito, um sujeito determinado aos bons predicados. Nem pestanejou, chutou o balde, negou acordo ao sacripanta, afinal o diabo não negocia com quem tem bom coração.

Desvalorizado, caiu em depressão, chorou um rio de lágrimas, confabulou um glossário de decepções com a raça humana… Inviabilizado como indivíduo, mergulhou na leitura, afogou-se na filosofia humanista.

Perdido naquela conjuntura abraçou a morte, desencarnou por falta de opção, venceu a gravidade, mora no centro do universo numa estrela; em dia de lua cheia, acende uma tocha, iluminando o caminho dos navegantes…

Idicampos

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